sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Notáveis, conscientes disso

Notáveis, conscientes disso,
Deram os seus passos, dominantes.
Trocaram as peles pelos fatos de macaco,
Os galhos a arder por electrões a correr,
A madeira pelo aço que os leva ao espaço,
A água fria por óleo a ferver.

Mutáveis, inconscientes disso,
Dão os seus passos, dormentes...
Apreciam o seu estado desconhecendo o vizinho do lado,
O trabalho e o mérito para comprar as peles, sem crédito,
O rio fétido e imundo onde não se consegue ver o fundo,
A gravata no pescoço e fruta sem caroço.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Bebi o vinho, sentado

Enumerei um por um, até um, o problema no cabeçalho do copo. O gato, sentado em cima do cinzeiro vulgarmente cheio, lavava o antebraço esquerdo com afinco mas interrompeu subitamente a sua higiene pessoal com um bocejo que lhe adulterou o ângulo relativo dos bigodes. Compreendi porque não o podia manter no cabeçalho: dava a volta completa e impedia-me de encostar os lábios. Ensaiei de forma cuidada a sua colocação no rodapé e tudo parecia correr bem até o voltar a pousar: a meio da sua descida mais ou menos controlada de regresso à mesa, o problema caiu, um por um e até um, o que me levou a quase esmagá-lo com a base do copo e entornar o vinho. Tentei obter uma forma mais funcional, sem comprometer a estética, de enumerá-lo no copo: segurei-o pela base com a ponta dos dedos e coloquei-o no corpo, enquadrando-o com perfeição na imagem refractada e tingida que o atravessa. Agarrei o copo, moldei o problema aos cinco dedos e bebi. Reparei, passado algum tempo e uma observação mais atenta, que afinal, e apesar de enquadrado com uma perfeição ergonómica, o problema aquecia o vinho.
O gato aproximou-se do copo e cheirou-o.
Apaguei o cigarro e bocejei…


quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Estendi a mão à imaginação e ela fugiu! parte três

Pela porta da cozinha, através dos espaços vazios verticais móveis entre as fitas anti-insectos, conseguia ver o empregado às riscas com a cabeça enfiada dentro de um alguidar. Acendi um cigarro com a parte mais clara do topo da chama e peidei-me. No fantástico evento que passa na televisão em directo, alguém também acendeu um e curvou-se ligeiramente para a esquerda. Farto de limonadas, espero pelo meu copo com sangria que não vem... Continuo sem saber como sair daqui. Tenho de me lembrar de não voltar a este bar fedorento!
Ao passar pela máquina de café reparei que a roupa já estava seca. Estou aqui há mais de relógio e meio! Chamei-o e não respondeu. Talvez não me conseguisse ouvir... Chamei-o mais alto... Nada! Atravessei as fitas, aproximei-me, puxei-o lá de dentro pelo colarinho e, ofegante, disse-me que não queria sair já e barafustou por tê-lo puxado. Meti a cabeça dentro do alguidar, ainda a agarrar-lhe o colarinho, submergi-a e abri os olhos. Os cubos de laranja e os de maçã flutuantes formam um universo do qual não queria sair, mas não podia ficar assim para sempre… Larguei o colarinho, trepei lá para dentro, submergi-me na posição fetal e acordei quando me puxaram pelo meu… Já não havia sangria no alguidar e bocados de fruta dificultavam-me a respiração. Saltei para o chão, sacudi a fruta e vomitei assim que inspirei pela primeira vez o odor intenso a tinto. Dentre os cubos de maçã rosados e todo o bolo alimentar por digerir, a imaginação saltou e chapinhou para trás da máquina de café. A porta das traseiras abria-se lentamente atraindo a atenção de todos pela chiadeira característica.
Era eu! As poucas partes do corpo que não me doíam estavam completas com babas que, pelo tamanho e cor, me faziam lembrar o fiambre da pá. No espectacular evento que passava na televisão, duas pessoas pareciam trabalhar em equipa para encher de sangria a arca dos gelados desligada. Outra, permanece sentada à mesa, sorrindo, à espera do copo com sangria que lhe aparece no horizonte num dia de calor intenso e a outra, parece ter desmaiado ao pé da porta...

sábado, 27 de setembro de 2008

Normal

Pego nas minhas coisas e tomo rumo à direcção normal.
Sei que vou chegar atrasado pois vou à velocidade normal.
Sei que pé utilizar para me desviar de qualquer um dos normais buracos.
Sei em que buraco enfiar o pé quando me distraio e olho para um outro sitio normal.
Sei que a brisa normal permanecerá assim até que, ofegante, a inale...
Sei que após uma inspiração profunda, uma longa expiração é normal.
Sei que o cansaço é normal e que o descanso sucederá.
Normal…

domingo, 14 de setembro de 2008

A serpente que queria voar

Sempre ondulante, no chão chato e por vezes encharcado, pergunta-se a si própria: porque estou presa ao chão chato e por vezes encharcado?
Inconformada com o destino que se apresenta à sua frente, despende já a maior parte dos seus dias a tentar voar.
Nada a demove!
Não há obstáculo que se afirme superior à sua vontade.
Salta repetidamente e pensa com força que consegue...
Salta repetidamente e pensa com força...
Salta repetidamente e pensa...
Salta... Salta... Salta...